Relembro Proust que, numa inesquecível passagem do seu livro “Em busca do tempo perdido” descreve a sala de jantar do Grande hotel de Balbec “como um imenso e maravilhoso aquário diante do qual, numa parede de vidro, a população laboriosa de Balbec - pescadores e famílias de pequenos burgueses - invisíveis na sombra, se esmagam contra a vidraça para se aperceberem da vida luxuosa dessas pessoas tão extraordinária para os pobres como a dos peixes mais estranhos” (tradução por mim feita às pressas em ânsia de transmissão da ideia). Nesta passagem, descreve, este mestre da escrita, a incrível discrepância que sempre existirá neste mundo inevitavelmente material.
Crise? Isso só existe para alguns! É tão simples como isso. Nada existe de complexo em tal conclusão, sempre o mundo irá girar desta mesma forma e serão sempre os mesmos a carregar às costas o mundo, para que este continue a girar.
Pobres, sempre nos agarramos à ideia de que o dinheiro não traz felicidade.
Acreditemos nisso, sempre, para não chorarmos o dia todo…
Ironias à parte, a verdade é que a necessidade traz força, impele-nos para a luta e essa só nos poderá presentear com auto-realização e orgulho. Por poucos que sejam os passos que dermos, o esforço que invocamos para a sua realização será imensurável e trará nada mais que ainda mais força para lutarmos contra as injustiças que se atravessarão no nosso caminho até ao nosso último suspiro. Esta é a vida de um não rico, de pessoas que enfrentam desejos não realizados diariamente, insatisfações de desigualdade, frustrações de incapacidade de posse, etc… Ninguém poderá estar, em situação alguma, plenamente realizado e é aqui que nos apercebemos da existência de realidades diferentes. Não me arrependo de ter nascido deste lado do vidro, pois parece-me que o meu coração é maior e, sem dúvida, mais forte.
Esta chamada “crise” que atravessamos atinge o ego dos portugueses que haviam acreditado ter poder de compra, que haviam acreditado fazer parte de uma União Europeia desenvolvida e repleta de oportunidades e desenvolvimento. Deixemo-nos de ilusões ridículas. Os que sempre tiveram vida exacerbada, posses avultadas e subsequente falta de senso comum, são ainda os que assim continuam e perduram. Esses, jamais saberão o que é a crise, apesar de gritarem aos quatro ventos que “agora isto está muito mau, está tudo muito caro… mas sim, fui ao teatro; sim, já vi esse filme; sim, é claro que tenho umas calças dessas; sim, é claro que vou comprar as sandálias mais in, sim, é claro que arranjo as unhas no cabeleireiro todas as semanas, sim, é claro que vou jantar fora convosco…etc”. Por favor…
Percebo o direito de posse que adquiriram, seja por “osmose” ou por trabalho árduo. Nada apresento contra tais vidas, que não a minha, pois a ela não tenho direito e da mesma não tenho conhecimento. Nada me indigna na ostentação das suas posses, pois de tais posses não sinto necessidade e em nada afecta a minha relação diária com tais pessoas, que evidentemente muito me oferecem e muito me ensinam. Dois lados opostos que se completam, em inevitável necessidade mútua. No outro extremo, o que gasta uma nas unhas todas as semanas paga o pão e os iogurtes para os filhos durante uma semana e as calças de um pagam a água e a luz de um outro. Inevitável, esta diferença de realidades.
Com tais constatações, apenas desejo salientar objectivamente que existem diversas e variadas noções da realidade, nomeadamente essa denominada de crise. Enquanto para alguns é sinónimo de menos compras, posses e actividades recreativas, para outros é sinónimo de falta de comida na mesa, noites de insónia em desespero de futuro incerto e contas para pagar com saldo negativo, o mesmo quer dizer com dinheiro que não temos e que teremos de pagar com juros. Alguns nunca se aperceberão de que o dinheiro também se compra, e bem caro que este é.
A consequência mais injusta de tal crise não é a falta de bens mas sim a diferença entre os diferentes estratos sociais e a indignação que esta nos causa. A revolta, a incompreensão e os actos a que nos impelem tais sentimentos são sua a verdadeira consequência. O aumento da criminalidade, consequência directa de tais sentimentos, alia-se ao sistema educativo português que com o seu grau de sucesso inigualável nos surpreende. Eu, pessoalmente, surpreendo-me bastante ao dialogar ou tentar estabelecer diálogo, é mais o caso, com adolescentes activamente cativos de tal sistema. Fica sempre a estranha sensação de que todas as salas de aula decerto estarão equipadas com um televisor com “Morangos” a bombar injecções estereotipadas de realidades inexistentes e que tão ingenuamente assimilam os nossos jovens sem qualquer problema. Ou isso ou os alunos passam os 50 minutos de aula com os phones na tola e o acenar de cabeça ao qual os professores acedem, prolongando o seu monólogo com estupidificante contentamento, não passa do espasmo hipnótico que a música lhes provoca.
Felizmente, sempre existirá a excepção. Apesar de por aí andar escondida, acredito na sua existência e nela vou apaziguando as minhas frustrações. Voltemos, então, ao que me levou a escrever o título, primeira frase que despoletou tantas outras atabalhoadas. Tal denominada crise nada mais representa que mais uma volta na espiral interminável e cíclica, controlada pelos governos e sistemas mundiais, consequência de sistema governante desde o inicio dos tempos; fosse esse monarquia, ditadura, comunismo ou república. Com isto, relembro apenas que Portugal já conheceu crises muito mais tristes, em que poder de compra não tinha significado mais extenso que possuir um isqueiro, um colchão e umas mudas de roupa.
Sem querer entrar num debate que aqui não tem lugar, admita-se que o dinheiro faz parte dessas “imoralidades necessárias” a uma sociedade na condição de o seu reinado ser obstruído e controlado. Desconfiemos, portanto, e em igual proporção, de quem apregoe desdém por tal bem material. Não me visto de cinismo, quem me dera ter dinheiro! Este permite, ainda, aos não aderentes, sobreviverem no exílio, nos seus refúgios. Dinheiro compra muita coisa… nem que seja privacidade e fuga às pressões psicológicas do ciclo que ele mesmo gera. O sistema é inevitável, atinge todas as almas e mesmo as perdidas pagam o tratamento.
Não tenciono espalhar a minha pobreza com orgulho. Não sou apologista de extremismos nem ideologias de ataque crítico incessante. Relato apenas as diferentes realidades existentes e a sua notória interacção, que se verifica com o crescente contraste criado pelo buraco deixado a par da extinção da classe média. Sem querer desagradar aos seus detractores, afirmo apenas que a indecência do dinheiro não reside na sua existência mas sim na sua raridade; na forma insolente como é confiscado por meia dúzia de auto-intitulados senhores do mundo. (Um pressentimento desagradável adverte-nos, ainda que ideia louca minha, que a pobreza nos países desenvolvidos talvez nunca venha a ser vencida porque os ricos não têm necessidade dos pobres para enriquecer. Para isso, exploram já metade do mundo que vive em verdadeira, essa sim, Crise constante sem terem direito a sequer a pátria, que desde sempre se desenhou em prol de alimento de outra civilização qualquer distante.)
Devemos, portanto, voltar a cheirar a sabedoria dos Antigos e admitir, como Aristóteles, que a beleza, riqueza e saúde são igualmente acessórios úteis e válidos para uma boa vida. “Ninguém condenou a sabedoria à pobreza”, dizia ainda Séneca…
Ironia do destino é verificarmos que são os que menos têm que mais valores dão aos bens imateriais, esses que deveriam ser sempre os mais importantes. Já dizia a minha avó que o que não nos mata, torna-nos mais fortes. A minha mãe acrescenta sempre que não mata, mas mói. Fruto do que vivemos e experienciamos, cá nos vamos compondo de aprendizagens. Não sou perfeito espécime que se possa intrusar em sociedade endinheirada (ou aparentada de tal), mas sei que não o quero ser e isso serve-me de consolo ao meu ridículo estado de pobreza.
Não é que necessitasse de tais tempestades, mas decerto me irão ensinar a navegar melhor!
A família e os amigos são a verdadeira e única riqueza que perdurará e poderá fazer de nós ricas pessoas. Cultivemos, então, esse jardim, com amor! Esse que todos temos dentro de nós!
Obrigada a todos os que me amam!
Espero conseguir retribuir-vos sempre de braços abertos!
Respira e Não Pira.
Há 5 anos